segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Impiedade

Texto: Salmo 36: 1-4

“A carapuça lhe serviu? Se a carapuça lhe serviu, então você pode usá-la também.”

Esta sugestão geralmente é feita por alguém que traz à tona alguma acusação ou denúncia, e seu interlocutor também se encaixa na denúncia descrita ou carrega também a culpa pela mesma denúncia. Nos julgamentos da Inquisição portuguesa e espanhola, os acusados compareciam perante os tribunais religiosos vestidos com um chapéu longo e pontiagudo, geralmente em formato de cone (em castelhano carepuza). O acusado vestia a carapuça como sinal visível para o tribunal de aceitação da culpa. Então, o ditado “usar ou vestir a carapuça” assumiu esta mesma conotação: aceitar ou assumir a culpa diante de uma denúncia feita por alguém, pois se encaixa perfeitamente no contexto.

Inicialmente podemos ficar um tanto confortáveis presumindo que este texto só se aplica a pessoas que definitivamente e declaradamente não andam com Deus, aqueles que são descritos como “os ímpios” conforme o verso 1. De imediato podemos concluir que o salmista está se referindo àquelas pessoas abertamente inimigas de Deus. Mas com um olhar mais cauteloso para o texto, é possível que sejamos culpados das mesmas acusações que o salmista faz com relação ao ímpio. Será que a carapuça serve em nós? Se não for a graça de Deus atuando em e através de nós, temos o potencial de pecado para cometer as mais terríveis abominações. Através de denúncias muito claras, o salmo inicia-se com um forte tom contra os ímpios. Como diz o verso 1, A impiedade é resultado da falta do temor do Senhor.

O Salmo 36 é bem contrastante: inicialmente ele descreve a forma como a impiedade se alastra na vida de alguém que não teme ao Senhor (vs. 1-4), depois ele apresenta uma bela expressão de louvor/adoração a Deus. Este contraste serve para nos humilhar e constranger: O Senhor é tão bom, fiel, justo em Seu caráter e gracioso em Seus benefícios. Diante deste maravilhoso Deus como nos portamos? Vivemos à altura de tão gracioso amor, ou nos rebelamos contra o Seu querer, vivendo tal como ímpios?

A pergunta que faço é a seguinte: “Será se a carapuça vai nos servir? Será que as graves denúncias feitas por Davi com respeito aos ímpios se encaixam com o padrão das nossas vidas?” Vamos analisar o texto a fim de perceber se temos as características de um estilo de vida ímpio.

Será que as denúncias feitas contra o ímpio neste salmo se encaixam em nossas vidas?

Palavra-chave: denúncias

1) Acalentar falsas ilusões com relação ao pecado - vs. 2“e lhe diz que a sua iniquidade não há de ser descoberta, nem detestada.” Nesta denúncia, o salmista apresenta o ímpio como alguém que pensa que sua vida está acima de qualquer suspeita. O homem sem temor de Deus começa a se gabar por suas peripécias pecaminosas. Ele engana a si mesmo com a ideia de que não será descoberto em suas ações. Além de pensar que nunca será descoberto, ele também presume que nunca sofrerá algum dano. Quando alguém passa a desprezar o temor do Senhor, o primeiro resultado é insensibilidade em relação ao pecado. Assim, o pecado cria raízes cada vez mais profundas e escraviza o homem, tirando-lhe a percepção da rebeldia do próprio coração.

O profeta Amós trouxe um sério alerta ao povo que vivia na prática de idolatria, mas não se importavam em ser confrontados: “Ai dos que andam à vontade em Sião e dos que vivem sem receio no monte de Samaria” (Am. 6:1). Será que temos andado à vontade e despreocupadamente, pensando infantilmente que nossas transgressões estão bem guardadas? Quem nos iludiu com este pensamento tão ingênuo, que o nosso pecado passará despercebido? Ou que não haverá consequências danosas pelo mal cometido?

Quando Acã pegou a capa babilônica e escondeu debaixo da sua bagagem, ele certamente nunca imaginou que seria descoberto e que pagaria com a própria vida e a de seus familiares (Js. 7:11). O pecado será sempre ofensivo a Deus, e certamente não ficará impune de modo nenhum.

Os investigadores policiais geralmente dizem que “Não existe crime perfeito”. Por mais esperto que seja o assassino ou ladrão, a cena do crime traz provas e pistas para a polícia. Um fio de cabelo, um pedaço de unha, uma peça de roupa. Tudo pode ser utilizado na investigação. Eu diria que ao olhos do Senhor, não existe pecado que ficará sem cobrar o seu preço na vida de alguém. Não podemos esquecer jamais que em algum momento o pecado cobrará a sua conta: “o vosso pecado vos há de achar” (Nm. 32:23). Não relativizemos o pecado, porque ele nunca relativizará os prejuízos em nossas vidas. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia para a sua própria carne da carne colherá corrupção.” (Gl. 6:7-8)

O pecado tem um poder ludibriante. Ele deseja nos enganar ao ponto de relativizarmos valores e princípios da palavra de Deus. Ele nos ilude fazendo-nos crer que estamos seguros, e nesta falsa sensação de segurança muitos prosseguem nas suas práticas pecaminosas sem nenhum temor. É um traço bem característico de um estilo de vida ímpio: criar e confiar em falsas ilusões quanto à malignidade do pecado, sem dar importância ao efeito devastador que trará para sua vida e para outros ao seu redor.

2) Empregar as palavras com sagacidade - vs. 3a“As palavras de sua boca são malícia e dolo” - As palavras gotejam da sua boca como água suja da pia (E. Peterson)

O salmista faz mais uma denúncia: o uso indiscriminado de palavras com base em mentiras, com intuitos maliciosos para arruinar relacionamentos/pessoas. Palavras carregadas de engano e malícia brotam facilmente nos lábios do ímpio, pois cada um só dá o que tem. A mentira é o meio de distorcer a verdade para tirar algum proveito da situação, ou livrar-se de contratempos. Palavras cheias de falsidade procedem de um coração que não teme com sinceridade ao Senhor.

No Salmo 19:14, Davi ora assim: “As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam sempre agradáveis na Tua presença, Senhor, Rocha minha e Redentor meu.” Este também deve ser o nosso sincero desejo, que brota de nossos corações. Tiago também inicia o capítulo 3 de sua carta denunciando o mau uso da língua. Não é correto que os remidos usem a língua com propósitos incoerentes ou divergentes: amaldiçoar/abençoar, jorrar água doce e água amarga; falar bem de um irmão em sua frente, e quando tem oportunidade caluniar e denegrir o mesmo irmão.

Quantas vidas destruídas por palavras ditas maliciosamente, visando prejudicar ou ferir as pessoas! Passamos boa parte do nosso tempo utilizando o recurso da fala. Portanto, temos que adotar a mesma postura do salmista em filtrar tudo o que sai de nossos lábios para não pecarmos contra o Senhor. Assim como a faísca dá início a um grande incêndio, palavras carregadas com mentira e malícia causam graves prejuízos. Não vamos permitir que nossos lábios sejam instrumentos do inferno para destruir vidas! “A imagem completa do diabo é uma mistura de malícia e falsidade” (Matthew Henry).

“Nossa língua, portanto, precisa ser fonte de vida, e não cova de morte; precisa ser medicina, e não veneno; precisa ser bálsamo que consola, e não fogo que destrói.” Não é conveniente e nem coerente que os cristãos usem os seus lábios para envenenar relacionamentos e causar tropeço na vida de outros. Necessitamos exercer o domínio próprio sobre os nossos impulsos e encher o coração com o que é agradável e bom para edificação (a boca fala do que está cheio o coração).

Relacionamentos construídos com base em mentira são castelos de areia: em breve chegarão à ruína. Por isso precisamos construir relacionamentos interpessoais sem meias-verdades e sem malícia. Devemos deixar de lado a mentira, e falar sempre a verdade, mesmo que seja indigesta. O cristão não deve ser sagaz com uso das palavras, tentando levar vantagem em tudo, com malícia, audácia e mentiras.


3) Abandonar o caminho da prudência - vs. 3b- “abjurou o discernimento”

Mais uma denúncia: a malignidade de uma postura inconsequente na vida, sem refletir seriamente sobre os resultados de suas ações. Abjurar é negar ou renunciar abertamente. Discernimento faz referência ao bom senso nas atitudes e decisões. O ímpio, por sua natureza impetuosa e rebelde, age sem se importar com as consequências de seus atos. Ele brinca com fogo e não liga para quem se queima. O ímpio descrito no texto escolheu agir sem o menor grau de responsabilidade, sem medir o resultado trágico de seu procedimento.

A imprudência é filha da impaciência. Alguém precipitado deseja resolver tudo do seu próprio jeito, sem ter que esperar por ninguém. A vida de Saul nos oferece uma ilustração sobre a imprudência. Quando estava esperando Samuel para oferecer sacrifícios, vendo que o povo já ia se afastando, e que era necessário oferecer o sacrifício do holocausto antes de ir à guerra contra os filisteus, ele mesmo tomou as rédeas e ofereceu o holocausto. Samuel disse a Saul: “Procedeste nesciamente”, que literalmente significa como “um tolo imprudente”.

A prudência é necessária em todas as instâncias da vida. O trânsito está cheio de casos de imprudência. Motoristas inconsequentes que dirigem em alta velocidade ou sob a influência do álcool, são os que tiram a vida de milhares de pessoas. O aviso das placas de trânsito “Dirija com Prudência” é ignorado abertamente e os resultados são trágicos. “O prudente vê o mal e esconde-se (não se expõe ao mal, não fica de bandeja, não dorme no ponto); mas os simples passam adiante e sofrem a pena” (Pv. 27:12).

É impressionante a série de problemas causados por imprudência em decisões ou ações. Mas aquele que teme ao Senhor e quer agradá-lo em tudo, buscará agir sempre com prudência firmando os seus passos em obediência. Ser prudente é ser cauteloso, buscando utilizar os recursos espirituais e orientações bíblicas para tomar atitudes adequadas. O prudente é alguém ao mesmo tempo diligente e dependente. Ele é diligente: não cruza os braços e não se omite. Ele também é dependente: não se precipita confiando em sua intuição humana, mas se rende à sabedoria divina.

Ser prudente é pautar os nosso passos pela sabedoria que procede de Deus. Não é prudente seguir os nossos sentimentos, pois eles são instáveis. Atitudes precipitadas são tomadas no calor das emoções, sem considerar o valor da instrução bíblica. “O temor do SENHOR é o princípio da sabedoria, e o conhecimento do Santo é prudência” (Pv 9:10).

4) Alimentar pensamentos e projetos perniciosos - vs. 4

O salmista agora denuncia o pleno comprometimento com projetos perversos. A palavra “maquinar” tem no original o sentido de pensar, considerar ou imaginar. Pensamentos maldosos são alimentados de forma ininterrupta: “Até na sua cama planeja maldade” Salmos 36:4. No leito, onde deveria ser um lugar de descanso, é o lugar para tramas impiedosas e planos nocivos. O comprometimento com o pecado inicia-se na mente (nas maquinações do coração) e prossegue na transigência com o erro: “e ele nunca rejeita o mal”. O estilo de vida ímpio é governado pelos projetos e pensamentos que são alimentados na mente: a maldade passa a imperar na mente.

Davi alimentou pensamentos perversos e maquinou o mal, inicialmente com relação a Bateseba e depois com relação a Urias. As consequências foram terríveis na vida dele e de todos a sua volta. Se Davi tivesse exercido controle sobre seus pensamentos assim que surgiram, não teria entrado naquela espiral descendente. Se Davi tivesse colocado a sua mente na direção correta não teria se envolvido em tantas tragédias.

É bem verdade que alguém sem o temor de Deus, abrigará em sua mente muito lixo e perversão. Saber que o Senhor tudo sabe (onisciência) deveria nos constranger diariamente a alimentar nossas mentes com o que traz glória ao Seu nome. Por isso, temos que encharcar nossas mentes com as Escrituras, meditando nelas continuamente. Lembre-se: Pensamentos de indiferença ou até mesmo ódio em relação a alguma pessoa são tão pecaminosos como o assassinato. Pensamentos de cobiça sexual são tão pecaminosos como o adultério.

“Ninguém pode impedir que um passarinho voe sobre nossas cabeças; mas podemos impedi-lo de fazer ninhos.” A classe de pensamento você leva para o leito antes de dormir, definem que atitudes você tomará no dia seguinte. Portanto, que os nossos pensamentos sejam harmonizados com os propósitos de Deus e com os parâmetros do Reino de Cristo e a Sua justiça.

Como estão os nossos pensamentos? Cada um de nós é plenamente responsável pelo que entra e fica em nossas mentes. Por isso Paulo ordenou em Filipenses 4:8 – Nisso pensai (aquilo que é puro, justo, de boa fama, virtuoso e agradável a Deus). Temos que exercer o controle sobre o que permanece em nossas mentes sendo alimentado, para que os frutos sejam piedosos e glorifiquem ao Senhor.

CONCLUSÃO

“Será que as denúncias feitas contra o ímpio neste salmo se encaixam em nossas vidas?”

Como vimos, podemos não estar tão distantes de um estilo de vida ímpio. Se a carapuça serviu em algum de nós, ou seja, se os traços característicos deste estilo de vida estão presentes em nós, precisamos abandonar urgentemente as práticas denunciadas neste salmo e submeter-nos ao padrão de Deus revelado nas Escrituras.

Deus nos deu todos os recursos necessários que nos conduzem à vida e à piedade (2 Pedro 1:3). Portanto, um viver piedoso deve ser uma realidade para todo cristão, e não uma utopia. Por meio da instrução da Palavra e da ação santificadora do Espírito que em nós habita, podemos estar isentos das denúncias que foram descritas neste texto bíblico.

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