Texto-bíblicos: Números 13: 25-33; Números 14: 1-12 (A
JORNADA CRISTÃ)
A vida do cristão certamente pode ser considerada uma
jornada. A conhecida alegoria “O Peregrino” de John Bunyan traz a história
muito bem ilustrada da jornada de Cristão, que sai da cidade da destruição e
segue até a cidade celestial. Neste percurso, ele enfrenta duras provações e
dilemas. Na feira das vaidades ele é confrontado com as ilusões do materialismo
e da falsa segurança das riquezas, e no pântano do desânimo, outro personagem
chamado Volúvel desiste de prosseguir naquela jornada. A alegoria de Bunyan
apresenta-nos o fato de que todos nós somos convocados a fazer progresso na
jornada que está diante de nós.
Na carta aos Filipenses encontramos duas jornadas a
que todos nós, discípulos de Cristo, estamos submetidos, como as duas faces de
uma moeda. São inseparáveis na vida de todo cristão. Paulo apresenta estas duas
jornadas:
* Jornada externa. Diz respeito aos esforços do discípulo na dependência
do Espírito de fazer conhecido o evangelho de Cristo Jesus. Filipenses 1:12à “Quero ainda, irmãos, cientificar-vos de que as
coisas que me aconteceram têm, antes, contribuído para o progresso do evangelho.”
* Jornada interna. Diz respeito
ao crescimento do discípulo em semelhança com Cristo, um processo que nós
chamamos de santificação. Este avanço em maturidade cristã é evidência de
salvação genuína. Filipenses 1:25à “E, convencido disto, estou certo de que ficarei e
permanecerei com todos vós, para o vosso progresso
e gozo da fé.”
Essas
duas jornadas duram a vida toda, não devem ser separadas e têm um objetivo
comum: o louvor da glória de Deus. É também um projeto traçado por Deus para todos
os discípulos, que precisam cooperar para o avanço do Reino de Deus e viver de
modo digno do evangelho, firmados em
um só espírito, como uma só alma, lutando juntos pela fé evangélica. Portnato,
fica claro que não se empreende essa jornada no modo autônomo, sem depender de
nada ou de ninguém.
No texto registrado em Números capítulos 13 e 14
observamos o povo de Deus numa etapa crucial da jornada até Canaã. O povo saiu
do Egito perseguido por faraó e seus cavaleiros, mas Deus com forte mão os
levou seguros pelo Mar Vermelho e guiou o povo com segurança. Neste percurso, o
povo recebeu no monte Sinai as instruções da lei de Deus, os 10 mandamentos. E
depois de aproximadamente dois anos de jornada pelo deserto, o povo chega a um
local conhecido como Cades-Barnéia (Dt. 1:19), literalmente às portas de Canaã.
Os doze espias são enviados e ao retornar depois de quarenta dias fazem um
relatório do que encontraram naquela terra. Finalmente parecia que suas
esperanças se realizariam. A terra tão sonhada estava diante dos olhos deles.
Foi um momento singular de oportunidade, um divisor de águas na história
daquele povo. Quantas expectativas foram criadas para aquele momento? Pais
passavam para os seus filhos a história do patriarca Abraão e da promessa de
uma terra para o povo habitar. A experiência da terrível escravidão no Egito
tinha sido deixada para trás e agora a bênção tão aguardada estava logo ali
diante dos olhos.
O que vemos aqui é uma desmobilização estabelecida.
Enquanto dez espias interpretaram Deus à luz das circunstâncias, Calebe e Josué
interpretaram as circunstâncias à luz de Deus. A visão míope prevaleceu e o
desânimo tomou conta de todo o povo. Assim, não tinha como o povo avançar na
jornada com os corações temerosos e alimentando atitudes que geraram desunião.
Isto resultou num grande prejuízo para o povo, que ficou rodopiando no deserto
por mais 38 anos, até que toda aquela geração morresse e os seus filhos
pudessem entrar sob a liderança de Josué.
“Na jornada do povo de Deus há algumas atitudes desagregadoras que devemos evitar”
1) Superestimar a oposição ao
propósito do Senhor (Nm. 13: 28-29;
31-33)
Estes
detalhes em primeira mão a respeito dos moradores da terra deram ao relatório
dos espias um toque de autoridade, e sem dúvida ajudaram a convencer o povo da
impossibilidade da sua conquista. Muito embora a terra manasse leite e mel (há muitas regiões de pasto para ovelhas,
cabras e gado, bem como é abundante em árvores frutíferas); o problema é
que os espias passam mais tempo falando sobre a expectativa de ter de enfrentar
os habitantes atuais da terra. O povo está convencido, pelo discurso da maioria
dos espias, da impossibilidade de subjugar os habitantes atuais da terra. Esta
foi a conclusão do relatório trazido pelos espias, com exceção de Josué e
Calebe. A forte oposição que o povo sofreria ao entrar na terra havia sido
supervalorizada e propagandeada como fato incontestável, justamente porque os
espias deram aos fatos a sua própria interpretação. É assim que nascem as “fake
news”.
Notem
que os espias chamam atenção para os obstáculos que havia no caminho da
conquista: o povo é forte (28: cf. 18) e as cidades são grandes e fortificadas.
Ainda relacionam alguns dos habitantes da terra, os filhos de Enaque (28; cf.
22), trazendo à tona a fragilidade diante daqueles gigantes. A síndrome de gafanhoto
foi promovida pelos espias e o medo logo apoderou-se do povo.
A
tentativa de Calebe de acalmar o povo e reacender a sua fé nas promessas
(subamos, possuamos) é imediatamente repelida pelos outros espias, com uma
representação falsa e ainda mais ultrajante (31-33). A alegação de que a terra
devora os seus habitantes (32), significa que eles tendem a morrer devido ao
seu ambiente hostil. Em outras palavras, não havia escapatória caso entrasse
naquela terra.
Precisamos
lembrar que o propósito de conquistar a terra fora estabelecido pelo Senhor,
uma promessa ao patriarca Abraão (Gn. 12:7), e repassado geração após geração.
Sendo assim, os meios e recursos para a conquista da terra certamente seriam
providenciados pelo próprio DEUS. É tanto que observamos no livro de Josué atuações
extraordinárias do poder de Deus para a conquista de Canaã (por exemplo, as
muralhas de Jericó que ruíram por milagre a correnteza do Jordão que se
interrompeu para todo o povo passar a pé).
A
oposição que Martilho Lutero enfrentou após ter afixado e defendido as 95 teses
foi bastante severa. Havia o perigo de que Lutero fosse condenado e acabasse na
fogueira como John Huss cerca de cem anos antes. Na preparação para a
assembleia, Lutero, autor de trinta e sete hinos, teria composto o conhecido
hino “Castelo Forte”, baseado no Salmo 46 (Deus é o nosso refúgio e fortaleza,
socorro bem presente nas tribulações. As nações se embraveceram; os reinos se
moveram; Ele levantou a sua voz e a terra se derreteu). Havia uma forte oposição
maligna ao propósito que Deus implantou no coração de Lutero, a alta cúpula da
igreja católica que queria que ele negasse tudo aquilo. Ainda assim ele
prosseguiu firme no propósito do Senhor, de defender a verdade mesmo que isso
lhe custasse muito.
Sem
dúvida, Satanás também é um forte opositor do discípulo na jornada neste mundo.
Ele é astuto o suficiente para aproveitar nossas fragilidades. Mas a Bíblia nos
diz que maior é aquele que está em nós do que aquele que está no mundo. Como na
história de Jó, suas artimanhas só podem ir até onde Deus decreta, nem um
milímetro a mais. O governo de Satanás é subordinado e temporário. Somos filhos
amados do Pai e por isso podemos contar que seremos preservados. Em meio a
todas as lutas próprias desta vida, os santos só perseveram porque o Grande
Deus trabalha para preservá-los até o fim. Jamais nos esqueçamos que temos um
vencedor fiel. Sim Jesus é o príncipe da paz, mas Ele é também o vencedor que
derrotará todos os inimigos e estabelecerá o seu reino. A letra do Hino Castelo
Forte nos encoraja assim: Com fúria pertinaz / Persegue Satanás / Com
artimanhas tais / E astúcias tão cruéis/ Que iguais não há na terra / O grande
acusador / Dos servos do Senhor / Já condenado está / Vencido cairá / Por uma
só palavra.
Alguém
disse que nossos maiores inimigos não estão fora de nós, mas habitam dentro de
nós. Certamente aquilo que nos causa pavor diante dos desafios pode se tornar
um grande obstáculo para nosso progresso na fé. Cultivamos resistência e
ficamos acomodados em uma certa zona de conforto que é extremamente danosa para
nossa saúde espiritual. Deus não quer ativistas (o mero fazer por fazer), mas
Deus requer servos atuantes que empreendem esforços com base nas grandes
promessas e fidelidade do Senhor. Na jornada da fé, precisamos olhar mais para
o nosso Deus do que para os temores que a oposição nos apresenta. A descrença
sempre vê os obstáculos; a fé sempre vê as oportunidades de glorificar a
Cristo.
Irmãos,
em nossa jornada de fé, sempre haverá oposição àqueles que desejam realizar a
obra determinada pelo Senhor. Por exemplo, Tobias e Sambalate, que se opuseram
à obra de reconstrução dos muros de Jerusalém liderada por Neemias. Estes
homens ridicularizaram a obra e faziam ameaças aos homens que estavam com Neemias,
preparando inclusive uma forma de atacar e fazer cessar aquela obra. A Bíblia
nos diz que a partir do momento que souberam disso “cada um dos construtores
trazia na cintura uma espada enquanto trabalhava” (Neemias 4:18). No avanço do
evangelho, haverá oposição. Na guerra contra o pecado, também há forte oposição
dos três maiores inimigos: o mundo, a carne e o diabo. No entanto, esses
inimigos existem não para serem superestimados. Eles devem ser vencidos por
meio dos recursos da graça de Deus operando em nós. O mundo e suas falsas
atrações é hostil ao crente e a tendência é piorar ainda mais, porém não devemos
ficar reféns do mundo. Temos um Deus que nos satisfaz muito mais plenamente que
os atrativos deste mundo; um Senhor que nos comprou com alto preço e orou por
nós: “não peço que os tire do mundo, mas que os guarde do mal” (João 17:15). Diante
das oposições e lutas não adotemos a síndrome do gafanhoto. O vitimismo mata e
destrói a unidade em torno do propósito maior de avançar na jornada com Cristo.
Temos
e teremos lutas e provas. Dias fáceis e outros quase insuportáveis. Mas
lembre-se que nas lutas e nas provas a igreja, pela graça e força de Deus,
segue sempre caminhando. A nossa história como Igreja é marcada por uma verdade
insuperável: somos fortalecidos por Deus! Nossa fé em Cristo é fortalecida. A
convicção na Palavra é fortalecida. A dependência do Senhor é fortalecida. A
comunhão como igreja é fortalecida. A paz em Cristo é fortalecida. Somos um
povo chamado por Deus para uma jornada de fé e, enquanto caminhamos, somos
fortalecidos. (Ronaldo Lidório).
è O povo que confia no soberano
propósito do Senhor ao longo da jornada permanece coeso e com vigor para
prosseguir.
2) Expressar insatisfação com o
direcionamento do Senhor (Nm. 14:1-4)
Neste
ponto a rebelião alcança o seu auge. Amedrontado com a descrição da terra
prometida feita pelos espias, o povo sucumbe completamente. Mas desta vez eles
na verdade propuseram a volta ao Egito, rejeitando completamente, desta forma,
todo o direcionamento divino para a redenção do seu povo. Quando atacam Moisés
e Arão, indiretamente o povo está insultando a Deus, que os comissionou à
missão de liderança do povo naquela jornada. Notem que, de Êxodo 1 até a missão
dos espias, prevalece um só tema: como Israel foi tirado do Egito e trazido às
fronteiras de Canaã. Agora, tendo o seu alvo diante dos olhos, eles sugerem que
desistam de tudo. Não apenas isso: eles propõem que seja eleito um líder que
substitua Moisés, o servo de direção e orientação nomeado por Deus. Há um
desaforo gritante na sugestão proposta no verso 4: “Levantemos a um para nosso
capitão, e voltemos para o Egito! ” Era como se todo o direcionamento do Senhor
com sua mão poderosa, coluna de fogo à noite e coluna de nuvens durante o dia,
guiando o Seu povo por meio de um deserto escaldante, não tivesse valido a
pena. A conclusão: diante daquele quadro, era melhor voltar, abandonar a
direção divina para entrar livres em Canaã e retornar à escravidão no Egito.
Precisamos
tomar bastante cuidado em decisões quando estamos dominados pelo pavor.
Ponderar com o coração cheio de ansiedade não é uma boa atitude, principalmente
porque temos a tendência de abandonar o direcionamento do Senhor e adotar
velhas práticas que não condizem com a nova natureza implantada em nós. Quantas
vezes ficamos insatisfeitos com o direcionamento que emana da Palavra de Deus
porque ela confronta nossos medos? E é natural de nossa natureza caída querer
sempre achar um culpado para a nossa insatisfação com o que Deus diz.
É
importante considerarmos que a jornada cristã necessita do contínuo
direcionamento do Senhor, justamente porque em nós mesmos reside o desejo de
seguir o nosso próprio entendimento. Quando alguém está tocando numa orquestra,
a presença e o direcionamento do maestro é fundamental. Imagine como seria a
bagunça se cada músico componente da orquestra resolver seguir um ritmo
diferente, ou tocar numa tonalidade diferente da partitura, ignorando a
regência só porque está insatisfeito com o andamento da música conduzida pelo
maestro. Da mesma forma, Deus nos direciona por sua Palavra utilizando líderes
que se mostram sensíveis à sua voz, para que o povo do Senhor prossiga em
harmonia no propósito da Sua glória.
O
direcionamento teocêntrico é contrário ao direcionamento antropocêntrico.
Quando o homem é o centro de tudo, suas decisões e valores passam a ser
governados por vaidades pessoais. Agora quando Deus é o centro da vida, as
decisões e valores são consideradas à luz da Bíblia. Sendo assim, não é o que
você ou eu achamos, é o que a Bíblia nos diz.
Conheço
pessoas e você também deve conhecer que experimentam uma luta profunda em suas
vidas porque não se satisfazem mais nas Escrituras corretamente interpretadas.
Estão num círculo vicioso sem avanços efetivos na jornada. A história de Jonas
ilustra bem isso: ele nunca ficou satisfeito com o direcionamento do Senhor
para sua vida. Ele experimentou um naufrágio e esteve três dias no ventre do
peixe, mas ainda assim a sua insatisfação persistiu, quando Deus resolveu
poupar a cidade de Nínive. Sem a graciosa e atuante direção de Deus, que
direção teria a nossa vontade? Não me refiro a uma espécie de direcionamento
místico, baseado em sentimentos voláteis, mas à direção que vem da Bíblia:
“lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho” (Salmo
119:105). A Palavra é eficaz para nos conduzir seguros em meio às adversidades
externas e temores do nosso próprio coração.
Os
homens sempre acham difícil confiar simplesmente na Palavra de Deus quando a
experiência e a visão humana dizem o contrário. Por isso, grandes oportunidades
de crescimento são desperdiçadas ao longo da vida. Preferimos seguir nossa
intuição ou confiar que somos sábios o suficiente!
Rodeados
por uma multidão de vozes convidativas e persuasivas, precisamos do sistema de
filtragem que somente a sabedoria de Deus pode dar. Sejamos satisfeitos com o
direcionamento do Senhor, e não deixemos que a precipitação nos traga sérios
prejuízos. Como diz a letra de uma música: “Mesmo sem saber como Tu dirás /
Dentro de mim reinará a Tua paz / Que me faz saber / Que esperar em Ti / É
sempre caminhar. ” É bom olharmos para nossa história e percebermos como a
sabedoria de Deus nos conduziu até aqui.
Mas
se o nosso coração estiver cheio de insatisfação com o direcionamento do Senhor,
criaremos rapidamente um ídolo, desejaremos rapidamente algo ou alguém que nos
leve para algum lugar. O problema é que “a idolatria sempre decepciona. Todo
ídolo se quebra porque o peso colocado no ombro dele é grande demais. ” Todos
temos a tendência de nos curvarmos diante do ídolo da autossuficiência que nos
leva a confiar em nosso próprio entendimento e tomar direções equivocadas. A
Sabedoria personificada no livro de Provérbios já nos adverte: “Confia no
Senhor de todo o teu coração e não te estribes no teu próprio entendimento.
Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas” (Pv.
3: 6-7).
A
insatisfação com o direcionamento pode se manifestar de modo bem sutil em
nossas vidas. Passamos a duvidar da suficiência das Escrituras e pensar que existem
alternativas melhores para nos orientar. Conselhos ímpios e vazios encontram
espaço em seu coração? Em conversas com alguém, já ouviu a sugestão de
abandonar a fé por conta de alguma decepção? Há diversas situações em que
podemos ser questionados sobre a validade do conselho bíblico, mas que façamos
como o salmista: “Bem-aventurado o que não anda segundo o conselho dos ímpios;
antes, porém o seu prazer está na lei do Senhor.”
Outra
aplicação importante: valorizemos também a liderança que Deus constitui sobre o
seu povo, a liderança que está sensível ao direcionamento que emana das
Escrituras. Deus requer que não sejamos desagregadores, mas submissos à
liderança espiritual que está sobre nós. Isso é indispensável para lutarmos
juntos pela fé evangélica e prosseguirmos em direção ao alvo da igreja do
Senhor. Uma liderança saudável com foco na glória de Cristo e no Reino, que tem
como objetivo a direção Senhor, precisa de apoio e cooperação. Sabemos que Deus
concede sua visão de Reino a pessoas específicas que lideram o seu povo em
direção ao cumprimento do seu plano. Devemos sempre interceder pelos líderes
que manejam a Palavra da verdade com sinceridade e santo temor.
è O povo que se encontra satisfeito em
ser direcionado pela Palavra do Senhor ao longo da jornada permanece coeso e
com vigor para prosseguir.
3) Desprezar a rica provisão feita
pelo Senhor (Nm. 14: 10-12)
Agora
o cenário muda consideravelmente. Não é o povo que fala. É o próprio Deus quem
dá o diagnóstico de modo preciso. O murmúrio chega a um ponto bastante crítico,
a ponto de o povo querer apedrejar Josué e Calebe. Neste momento a glória
(kavod) do Senhor apareceu na tenda, estabelecendo um cenário de resplendor,
honra e temor reverente (como no monte Sinai na entrega das tabuas da Lei, Ex.
24:16). Este cenário da manifestação gloriosa do Senhor estabelece um clímax
para um anúncio solene. Então Deus faz dois questionamentos: “Até quando me
provocará este povo?” (o verbo ‘provocar’ significa tratar com desprezo e
desdém) e “até quando não crerá em mim?” A versão da NVI traduziu assim: “até
quando este povo me tratará com pouco caso, até quando se recusará a crer em
mim?” Notem então que o desprezo à bondade de Deus está ligado diretamente à
incredulidade. O desprezo à provisão divina era inconcebível considerando
“todos os sinais que Deus tinha feito no meio do povo.”
A
conclusão do Senhor em forma de pergunta a Moisés é um raio-X do coração
daquele povo, cheio de incredulidade e menosprezo diante das maravilhadas
operadas. Deus não teria o mesmo poder que fez o mar Vermelho se abrir ou
chover maná do céu, para continuar sendo providente e cuidadoso com o Seu povo?
Será que os israelitas tinham esquecido tudo que Deus fizera por eles nesses
dois últimos anos? Será que a provisão de Deus tinha sido uma miragem naquele
deserto? Uma multidão de hebreus, em torno de 3 milhões de pessoas, chegar até
às portas de Canaã foi um milagre inquestionável. Impossível não perceber a boa
mão de Deus atuando em prol do seu povo ao longo desta jornada. Em síntese, o
povo de Israel, ao recusar-se a crer no poder do Senhor, sobretudo tendo em
vista todas as maravilhas que tinham experimentado, tratava Deus com desprezo. Lembremos
que a fidelidade de Deus é a Si mesmo, por isso Ele fará cumprir o que lhe
agrada, e nós precisamos estar sensíveis e gratos pela Sua provisão nesta
jornada.
Interessante
notar que já tinha acontecido um episódio de questionamento do cuidado e
provisão de Deus (em Êxodo 17). O povo de Deus chegou num lugar chamado Refidim
e lá não havia água para beber. A contenda e murmuração foram intensas a ponto
de Moisés temer ser apedrejado. Neste episódio, Deus ordenou que Moisés ferisse
a rocha. E da rocha em Refidim saiu água boa para dessedentar o povo.” E chamou
o nome daquele lugar Massá e Meribá, por causa da contenda dos filhos de Israel
e porque tentaram ao Senhor, dizendo: Está o Senhor no meio de nós ou não?” (Êx
17:7). Vejam que o escritor registra a síntese da reclamação: o Senhor está ou
não no meio de nós? Em outras palavras, somos ou não somos cuidados e mantidos
pelo Senhor. A resposta é um sonoro SIM diante de tantas evidências do poder de
Deus em tirar o povo com braço forte do Egito.
Ao
desprezarmos a provisão de Deus estamos desprezando o próprio Deus. O desdém
diante de tantas bênçãos que Deus já nos concedeu, em especial as espirituais
nas regiões celestes, tem feito um grande estrago no meio da igreja do Senhor. Até
porque um coração descontente não se encaixa em lugar nenhum. Quando não valorizamos
o que já recebemos graciosamente é impossível cultivar um coração agradecido e
vibrante na obra do Senhor. A murmuração será sempre constante em nossos
lábios. E notem como a murmuração e a ingratidão juntas destroem os laços de
união em qualquer contexto. Pessoas ingratas geralmente olham os outros com
inveja, e não conseguem se alegrar com os que se alegram. Se fizermos uma
retrospectiva honesta em nossa vida veremos que sobram motivos para agradecer,
por maior que seja a nossa luta hoje. Na jornada do discípulo que entendeu a
essência da graça, enxergar a provisão de Deus é um exercício diário. O
apóstolo Paulo disse que passou por esse aprendizado, estando contente em toda
e qualquer situação e disse que isso era possível porque era fortalecido pelo
próprio Senhor.
A
ingratidão e o descontentamento causam diversas rupturas em nossa vida. Por
exemplo, quantos casamentos estão passando por turbulências porque os cônjuges
não são gratos pela vida um do outro? Dificuldades diversas sobrevêm sobre a uma
família quando cada membro toca a sua rotina sem se importar em encontrar
deleite na provisão feita pelo Senhor. Podemos pensar em situações de total
desafeto porque a cultura do contentamento não foi implantada: manifestações de
ira, gritaria e descontrole emocional por conta de corações que desprezam a boa
mão do Senhor em prover, sustentar e cuidar. A desagregação é notória quando
prevalece o queixume e estamos cegos para enxergar o quanto Deus tem cuidado de
nossa família em detalhes que nem sequer percebemos.
O
problema de desprezar a provisão do Senhor ainda gera outros problemas como o
receio de avançar em ações efetivas no reino de Deus. Quem não confia que Deus
é providente certamente não dará maiores passos de fé na jornada cristã. Por
isso o autor da carta aos Hebreus nos incentiva a nos desembaraçarmos de todo o
peso do pecado que tenazmente nos assedia (isso inclui a incredulidade), para
corrermos com perseverança a carreira que nos foi proposta. Portanto,
precisamos tomar muito cuidado com a nossa alma quando sentimentos ditam as
conclusões sobre Deus!
John
Piper nos desafia a vivermos pela fé na graça futura citando o Salmo 73:26: “Ainda
que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração
e a minha herança para sempre.” Ele afirma: “Deus não é glorificado se o
fundamento de nossa gratidão é o valor do dom em si e não a excelência do
Doador.” Sem a generosidade e força que provém de Deus de que adiantaria todo o
nosso esforço nesta vida? Seria impossível enumerar os benefícios do SENHOR
através de irmãos, conselheiros, amigos que nos ajudaram nesta jornada com
Cristo. Seria impossível contar as bênçãos espirituais de conforto e paz em
meio a terríveis lutas que passamos. Viver o evangelho implica não tratar com
desdém o que de graça no foi dado. Isso mantém o coração firme para
enfrentarmos batalhas espirituais.
Enumerar
os milagres de Deus é impossível. Irmãos, precisamos reconsiderar o significado
do que são milagres. À nossa volta milagres acontecem e nem percebemos, pois
estamos insensíveis à atuação do Senhor. Mesmo num mundo caído e torto pelos
efeitos do pecado, milagres da graça de Deus são constantes. Podemos ver
milagres a todo o momento se nosso coração for grato e atento. Isso não é
negação da realidade quando os ventos são contrários; é enxergar milagres mesmo
no meio dos dilemas e lutas próprias desta vida. Que sejamos mais atentos aos
milagres de Deus no cotidiano e nas coisas ordinárias.
è O povo que consegue perceber os
milagres da provisão divina ao longo da jornada permanece coeso e com vigor
para prosseguir.